Entre os dias 31 de agosto e 02 de setembro, cerca de 70 mulheres representantes de territórios, organizações e movimentos de 6 estados do país participaram do “Encontro Mulheres Semente: Multiplicando Pedagogias de Luta”.
Reunidas na cidade do Rio de Janeiro, defensoras do bem viver e de territórios livres, produtivos e preservados debateram a respeito das suas lutas e enfrentamentos às injustiças e aos impactos socioambientais de megaprojetos de desenvolvimento, como as atividades da cadeia de mineração e siderurgia, agronegócio, energias renováveis, petróleo e gás.
O encontro aconteceu na culminância da formação de mesmo nome, promovida pelo Instituto Pacs (RJ), em parceria com o Instituto Terramar (CE) e Fórum Suape (PE), como desdobramento de projetos anteriores e também do mais recente “De Mãos Dadas Criamos Correnteza”.
O curso foi destinado a mulheres lideranças em processos de mobilização popular em suas comunidades, bairros e territórios atingidos por megaprojetos e empresas. A proposta principal foi de ampliação dos repertórios de luta, reunindo pessoas em um campo crítico a partir da troca de saberes e experiências em três módulos virtuais e um presencial.
Durante a etapa virtual, o curso abordou diversas temáticas, dentre elas a caracterização de megaprojetos e seus impactos, interseccionalidade, repatriarcalização dos corpos-territórios, complementaridade de saberes e racismo ambiental. Durante a etapa presencial, foram recuperados os conteúdos debatidos ao longo dos encontros virtuais e abordou-se mais diretamente as pedagogias feministas de luta.
Por três dias, essa semente foi alimentada com debates políticos, partilhas de experiências, trocas de saberes, poéticas e canções a respeito de suas realidades. A profunda análise dos mecanismos de manutenção e imposição de uma sociedade capitalista, patriarcal e racista adveio de relatos dos contextos enfrentados por elas, que a partir do Pará, Maranhão, Ceará, Pernambuco, Bahia, São Paulo e Rio de Janeiroexpuseram semelhanças na violação de seus direitos, corpos, vidas e territórios.
É certo dizer que o patriarcado e o racismo ambiental atravessam todos esses contextos, por ser a base sobre o qual o projeto de nação e de geopolítica global se erguem. É através deste que os megaprojetos, sua implementação e concentração, visam às terras e territórios ocupados sobretudo por populações negras, indígenas, tradicionais e empobrecidas, tendo por proprietários e gestores quase sempre pessoas brancas, masculinas e cisgênero que, na maioria das vezes, sequer possuem vínculo com estes territórios, como apontaram as mulheres.
Elas observaram como a aliança entre poder público, grandes empresas e capital internacional tem por estratégia narrativa a utilização de discursos desenvolvimentistas, prometendo emprego e a necessidade de crescimento de uma região ou do país para, na prática, gerar acumulação de capital através do esgotamento de ecossistemas, desalojamento de comunidades e destruição de diferentes modos de vida.
A impressão que esse tipo de discurso funda no imaginário coletivo é que o mundo inteiro e suas mazelas não têm solução se essas mulheres não toparem que um megaempreendimento se instale em seu quintal ou até mesmo no lugar de sua casa, as obrigando a migrar com sua família ou a ter sua forma de viver alterada e prejudicada.
As mulheres ficam com os ônus, portanto, de serem sacrificadas, e a despeito do que essa lógica promete, elas não têm retorno. Ou, se têm, este é infinitamente desproporcional e insuficiente diante dos danos causados, já que elas ficam com saúde física e mental prejudicada, sem acesso aos bens comuns ou com acesso a fontes vitais envenenadas, além do dano irreparável da modificação do modo de viver, produzir, cultuar fé e ancestralidade, transitar e existir em seu sentido mais pleno e digno. Que desenvolvimento é esse?
Os debates no encontro evidenciaram desde o chão da realidade das mulheres presentes um aspecto da conjuntura brasileira que tem agravado essa situação – a chamada “transição ecológica” impulsionada pelo governo do presidente Lula, lançada através de um plano articulado com o novo Plano de Aceleração do Crescimento (PAC).
Esse plano prevê linhas de crédito, parcerias público-privadas e diversos incentivos fiscais à implementação da chamada transição energética, cujo discurso de diminuir os impactos socioambientais carrega a falácia de que, além de prosseguir impulsionando a indústria do gás e do petróleo, a gestão omite a falta de consulta prévia, livre e informada às comunidades atingidas e os conhecidos impactos socioambientais causados pelos modelos de implementação e funcionamento das indústrias da energia eólica, hidrelétrica e solar.
Para Simone Lourenço, da coordenação executiva do Fórum Suape, “o processo formativo que foi vivenciado durante esse período mostra a importância de investirmos na formação política das mulheres. E vivenciar essa culminância aqui no Rio, com essa diversidade, nos retroalimenta para a nossa atuação nos territórios”.
Como são as mulheres as sementes de mundos melhores, e como faz parte de seus saberes a fé e luta aliadas ao posicionamento crítico, o espaço foi também lugar de coletar estratégias de resistência, autocuidado e salvaguarda de seus direitos.
Ana Laíde Soares, participante que veio da Vila do Espírito Santo do Tauá, no nordeste paraense, descreve a vivência: “É muito mais que um encontro, uma formação. É uma rede de cuidados. Nós vivemos um cotidiano de luta constante contra megaprojetos, é uma batalha a cada dia. Vir para cá é compartilhar isso, mas também se energizar”.
Unidas, essas mãos semearam sonhos, planos, ideias e o sentido de uma nova aliança que surge para fortalecer a peleja de cada uma e de todas juntas, no chão de suas histórias, valendo-se de suas raízes que firmam e nutrem os caminhos de luta.
“É uma alegria olhar o Curso Mulheres-Semente, feito por tantas mãos e que reflete construções que começaram anos atrás. Debater e pensar estratégias frente às violações cometidas pelas empresas e seus megaprojetos é um desafio, mas que através da partilha em roda e das práticas de cuidado coletivo, pode ser menos duro. Estar em plenária reafirma para nós que não é possível defender os direitos humanos frente ao capital se não tivermos uma leitura política viva sobre o patriarcado e o racismo. É dessas fontes que o Capital se retroalimenta. E é entre mulheres que temos defendido a vida!”, avalia Ana Luisa Queiroz, coordenadora de projetos do Instituto PACS.
Os fios que conectam essas mulheres costuraram as estratégias necessárias para o nascimento dessa rede entre defensoras de direitos, tecida no reconhecimento da importância da comunicação, autonomia, autogestão e articulação territorial.
Foram dias de construção de um marco que será sempre lembrado por todas as que estiveram presentes nesse momento sensível e forte da nossa luta feminista e da defesa dos territórios. “Esse espaço de intercâmbio, de troca e de leitura da realidade é muito relevante. É também a possibilidade de ensaiar a ideia da construção de uma rede de mulheres de maneira mais permanente, porque fica muito claro que é impossível cada comunidade e até mesmo cada estado enfrentar esse contexto de maneira isolada”, afirma Soraya Tupinambá, do Instituto Terramar.
Já se pode dizer que essas sementes germinaram, e estamos nutridas dessa força para seguirmos lutando em rede por tempos melhores. Como explica a participante Flávia Nascimento, da comunidade Piquiá de Baixo, no Maranhão: “É um encontro de mulheres-semente, então precisamos nutrir as teias para que as sementes continuem sendo semeadas, porque não tem nada mais importante do que a gente ver as mulheres nessas teias de ligamento, uma influenciando e fortalecendo a outra, dividindo as dores”.
Fotos: Camila Aguiar, Lívia de Paiva e Sara Gehren.