Novembro foi marcado por muitos acontecimentos importantes para as agendas dos direitos humanos e a política nacional e internacional. Um deles foi a consolidação da Rede Nacional de Mulheres Guardiãs dos Territórios Ameaçados e Atingidos por Megaprojetos.
Esse marco se deu no Seminário Nacional Mulheres e Megaprojetos, que aconteceu nos dias 01, 02 e 03 de novembro, em Cabo de Santo Agostinho – PE e reuniu 50 lideranças de 7 estados do Brasil. O objetivo do encontro foi a promoção de trocas e reflexão crítica acerca dos megaempreendimentos, seus impactos sobre a vida das mulheres nos territórios, meio ambiente, clima e partilha das formas de resistência, autodefesa e salvaguarda de direitos pelas participantes.
O seminário foi uma das últimas atividades do projeto De Mãos Dadas Criamos Correnteza, realizado em parceria pelo Fórum Suape (PE), Instituto PACS (RJ) e Instituto Terramar (CE), que finaliza em dezembro de 2024. O encontro deste ano foi um desdobramento do curso “Mulheres-Semente: Multiplicando Pedagogias de Luta” atividade do projeto realizada pelo Instituto PACS em 2023, com apoio do Instituto Terramar e Fórum Suape, no intuito de dar continuidade aos debates e fortalecimento da Articulação formada pelas mulheres que participaram da formação. A data do encontro, às vésperas da Cúpula social do G20 social e da Cúpula do G20 que ocorreram no Rio de Janeiro, teve ainda o objetivo de debater a conjuntura e esses grandes eventos globais, cujas discussões e acordos impactam a vida nos territórios, para reflexão sobre as possibilidades de incidência sobre essas agendas.
Tocados na maioria das vezes sem diálogo com as comunidades, visando quase sempre territórios de comunidades tradicionais e periféricas, de maioria negra e indígena, os megaprojetos representam e adensam profundas desigualdades que são marcas de formação e ação do país. Nuala Costa, da baía de Maracaípe – PE, esteve presente no Seminário e relatou alguns dos impactos e ameaças a seu território: “Os principais megaprojetos que nos atingem são os hotéis turísticos, a especulação imobiliária, e o Porto de Suape. E o que eles fazem é destruir a nossa bioeconomia. Quando eles destroem os nossos manguezais, os nossos mares, eles não destroem só a natureza. Eles não destroem ’só’ o meio ambiente, mas também destroem a nossa fonte de renda, a nossa bioeconomia, a nossa economia ancestral”. Marina Regina, do bairro de Santa Cruz no Rio de Janeiro – RJ, também esteve no evento e partilhou como a Ternium Brasil, antiga TKCSA, afetou sua comunidade: “foi primeiro uma chuva de prata, em seguida, a enchente do conjunto onde eu moro, que nós perdemos tudo.”.
Impactos como esses na maioria das vezes são impunes e silenciados pela grande mídia e pelo discurso governamental e empresarial. E quando acontece algum tipo de reparação, é completamente desproporcional ao dano gerado às inúmeras vidas e territórios que foram modificados, expropriados e danificados. Antônia Flávia, da comunidade de Piquiá de Baixo, em Açailândia – MA, partilhou que sua comunidade é impactada há mais de 30 anos pela cadeia da mineração, e completou “E há 19 anos a minha comunidade luta pelo reassentamento. Claro, não era o que a gente queria, mas foi o óbvio no momento em que a comunidade se viu apertada por todas as empresas siderúrgicas que estão rodeando a nossa comunidade, o nosso território. E recentemente a gente recebeu as chaves do nosso conjunto habitacional. E isso é uma conquista muito grande.”. Flávia compartilhou ainda que a presença das mulheres nos territórios e nas instâncias de decisão é fundamental para essas conquistas, e que tanto o seminário Mulheres e Megaprojetos quanto o curso Mulheres Semente foram fortalecedores nesse sentido. “Porque nós somos impactadas, Nós somos a maioria que que tem esse impacto diretamente. Então somos nós também que fazemos esse trabalho de defender a nossa terra, de defender o nosso território, de lutar pelos nossos direitos.”
As mulheres debateram também sobre os megaprojetos que estão sendo planejadas e estimulados pelas instâncias governamentais e empresarias sem diálogo com as comunidades possivelmente impactadas, a exemplo do projeto apontado por Iara Reis, do Movimento por Soberania Popular na Mineração – MAM (RS), que colocou que “vem acompanhando os megaprojetos tanto os que já estão instalados nos territórios quanto os que estão previstos”. Iara partilhou as prospecções sobre o projeto Retiro, em São José do Norte (RS), em que a mineração será de titânio para a indústria bélica. As potenciais ameaças de projetos em planejamento incluem ainda, as eólicas offshore, ou eólicas marinhas, experiência que o Brasil ainda não tem, mas que se projeta como corrida pelo potencial lucro no setor energético movimentado pelo discurso falacioso da energia limpa, como a PL das offshore, em votação no Senado, que acumula jabutis que favorecem a implantação de usinas termoelétricas, além de inúmeros possíveis impactos sobre as comunidades pesqueiras e na biodiversidade marinha. Vylena Sousa, da comunidade de Caetanos de Cima – CE, também participante do encontro, destacou que “(a eólica offshore) está chegando com força total, principalmente agora com o debate do clima. Então nós de comunidades tradicionais pesqueiras e de agricultores, pescadores, vamos sofrer muito com esse impacto.”.
A programação do evento, construída de maneira conjunta entre as organizações realizadoras e um grupo de trabalho das mulheres mobilizadoras da Articulação formada na culminância do curso Mulheres-Semente, abordou ainda a importância do cuidado, proteção, autodefesa, construção de redes e possibilidades de sustentabilidade de projetos autogeridos. As metodologias incluíram mapeamento das práticas de autodefesa e de construção de redes de apoio entre mulheres, oficina de geração cidadã de dados, mapeamento dos megaprojetos, plenárias, grupos de trabalho para aprofundamento das discussões e partilhas da sistematização.
Vylena compartilhou sobre o seminário que “estar aqui em Pernambuco, estar com essas mulheres que são afetadas, mas também são muito unidas e fortes fortalece cada vez mais essa nossa atuação no território.” Nuala Costa, de Maracaípe, ressaltou que a importância do encontro entre as mulheres foi “principalmente o acreditar que há possibilidades de mudanças e transformação. E isso, com mulheres que estão na mesma luta. E também é bom saber também – um bom negativo, mas um bom também positivo – que não é uma luta só minha, é uma luta de várias. E essa luta é do povo tradicional, é do povo quilombola, é do povo indígena, das mulheres pretas principalmente porque somos nós, mulheres negras, que estamos no embate, na frente.”.
Fruto do encontro, as mulheres definiram os próximos passos da Rede Nacional de Mulheres Guardiãs dos Territórios Ameaçados e Atingidos por Megaprojetos Articulação de Atingidas por megaprojetos e elaboraram uma carta de posicionamento, denúncias e recomendações diante dos megaprojetos e das agendas políticas, da esfera local à esfera global, para respeito à autodeterminação das mulheres, dos territórios e da diversidade de seus modos de vida.
Margarida Negreiros, da Articulação Feminista de Marabá – PA, participou do seminário e da formação da Rede e destacou que “As mulheres que saem de um encontro como esse possibilitado por essa grande Rede Nacional, jamais elas serão as mesmas. Ao chegar no território, como a gente diz, os banzeiros dos rios vão ser muito mais fortes. Eles vão se expressar na continuidade de uma resistência histórica que já vem acontecendo nessa região.”.
A carta aponta a responsabilidade do Estado brasileiro e das instituições financeiras multilaterais, já que bancos nacionais e internacionais têm um papel fundamental no financiamento dos megaemprendimentos que impactam vidas, ignorando as consequências socioambientais desses projetos. A carta esmiuça ainda quem são as/os sujeitos locais impactados; quais são as demandas e as reparações, destacando as necessárias transformações do Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos, que têm se mostrado ineficaz e insuficiente para resguardar a proteção e vidas dos e das defensoras de direitos humanos no Brasil.
Acesse aqui a carta aberta elaborada no encontro.
Confira aqui o depoimento na íntegra de algumas das mulheres participantes do Seminário e membros da Rede Nacional de Mulheres Guardiãs dos Territórios Ameaçados e Atingidos por Megaprojetos.
Foto: Lívia de Paiva Rodrigues
–
O projeto De Mãos Dadas Criamos Correnteza, realizado pelo Fórum Suape, Instituto Terramar e Instituto PACS conta com o apoio da União Europeia, da Sociedade Sueca pela Proteção da Natureza, da Pão Para o Mundo, da Misereor, da Fondo de Mujeres Del Sur e do Fundo Casa. O conteúdo desta notícia e das atividades do projeto são uma responsabilidade do Fórum Suape, Instituto Terramar e Instituto PACS e não expressam necessariamente a opinião de seus apoiadores.