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O que foi dito e ouvido, e o que se pode esperar: reflexões sobre visita da comissão do governo federal às comunidades atingidas por eólicas no Ceará.   

Apesar dos ouvidos atentos e mãos prontas para anotarem as falas urgentes de quem sofre os impactos das usinas eólicas, não foi possível perceber grandes comprometimentos com as análises e demandas apresentadas pelos que trouxeram suas questões significantes.

“Estamos aqui para ouvir”, afirmou Fábio Tomás, coordenador de projetos da secretaria do Governo, responsável pela comitiva da Comissão da Secretaria Especial da Presidência e representantes de sete Ministérios, durante os quatro dias (18 a 21/03) em que visitaram territórios impactados por renováveis no litoral cearense e regiões da Serra da Ibiapaba. No percurso entre cinco municípios, cerca de 200 pessoas participaram das mesas de diálogo “Energia Renovável: direitos e impactos”, expondo vivências e denúncias, apresentando a sociobiodiversidade a ser protegida nos territórios e apontando demandas mínimas inegociáveis. 

Apesar dos  ouvidos atentos e mãos prontas para anotarem as falas urgentes de quem sofre os impactos das usinas eólicas, não foi possível perceber grandes comprometimentos com as análises e demandas apresentadas pelos que trouxeram suas questões significantes. Além de ouvir, o maior compromisso da comitiva foi reiterar a importância das renováveis para o projeto de governo. Segundo Fábio Tomás, “a transição energética é importante, mas tem que ser feita nas condições do projeto político que a concebeu, não pode ser feito da forma como tem sido”. Agora, resta saber se o projeto político do atual governo garante a segurança territorial, jurídica e física das populações tradicionais, negras e indígenas. Se a escuta e escrita observada, garantem os direitos e salvaguardas demandados por organizações da sociedade civil, pescadores, agricultores, indígenas e quilombolas.     

Município de São Benedito 

A Serra da Ibiapaba é uma das maiores produtoras da diversidade agrícola do Estado do Ceará, mas vem sofrendo com a instalação de torres eólicas e a ameaça de expansão desenfreada desses empreendimentos. Atualmente, já existem três empreendimentos de energia eólica na região, e estão previstos mais 42 projetos. O município de São Benedito foi a primeira parada da comissão, sendo recebida com um toré da juventude indígina Tapuya Kariri. “Queremos ser ouvidos, escutados e principalmente respeitados, demarcação já! ”, afirmou  Andréa Tapuya Kariri. A liderança indígena questionou os representantes sobre a conivência do Estado com a desterritorialização de povos tradicionais, ao licenciar megaprojetos em seus territórios, ao invés de garantir a regularização fundiária, direito historicamente devido aos povos indígenas, quilombolas e tradicionais.  

Durante a mesa de diálogos, moradores da região da Ibiapaba falaram dos impactos  que vem enfrentando com a chegada das eólicas, como: solicitações irregulares de usucapião, o arrendamento de terras para instalação de torres, rachaduras nas casas da comunidade do Boi Morto, remoção de famílias, incentivo à disputa interna das comunidades, bichos assustados com o barulho e sombra móvel, pessoas ameaçadas e incluídas em Programas de Proteção, devido aos riscos de violências.

Soraya Tupinambá, do Terramar, ressaltou as injustiças camufladas pelos discursos verdes: “Em nome do clima se financiam projetos impactantes territorialmente. Em nome do clima criou-se um modelo de licenciamento que rompeu com a forma trifase (licença prévia, de instalação e de funcionamento). Em nome do clima está se violando direitos de segurança alimentar, direito de produção de alimentos e direito à água.” Em resposta, Ceicilene Martins, subsecretária do Ministério de Minas e Energias, destacou a importância do processo de licenciamento, “Estamos conversando com o Ministério do Meio Ambiente para rever as normativas de licenciamento ambiental de parques eólicos, tendo em vista que sua maioria se utiliza de um licenciamento de forma simplificado”. Para os moradores, nenhum licenciamento deveria avançar, enquanto os territórios não tiverem sua regularização fundiária, com respeito aos direitos territoriais dos povos garantidos.

Município de Camocim  

Descendo a Serra da Ibiapaba, a comitiva chegou em Camocim, litoral oeste do Ceará. A economia do  município se sustenta majoritariamente na pesca artesanal e no turismo de massa. O primeiro momento da mesa de diálogo foi uma caminhada pela orla de Camocim, onde a comitiva pôde ouvir alguns pescadores e trabalhadores da pesca, “O Pescador artesanal garante a renda, além de levar o pescado para casa e garantir muitos empregos indiretos, o que será do pescador com a previsão desses 26 projetos eólicos no mar”, questionou Ivan, pescador e  integrante da Articulação Povos de Luta (ARPOLU). 

Já no período da tarde, o diálogo foi em roda, com apresentação dos participantes,  na sua maioria pescadores, que demonstravam preocupação com a possível instalação de torres em suas passagens de pesca. “Eu não conheço nenhuma corporação, empresa, que produza mais emprego que a pesca, e por que agora o governo quer acabar com a pesca, privatizando o mar?” , questionou Toinho, pescador e morador da comunidade de Tatajuba.     

O Ceará é um grande produtor da pesca artesanal no país, mas, tornar-se um grande produtor de energia “limpa”, o hidrogênio verde é a grande aposta da atual gestão. E para garantir a produção em grande escala é preciso o maior número de renováveis (eólicas e solares). Nessa corrida em busca de territórios para novas usinas, o mar tem sido pleiteado para a instalação de torres eólicas. O Estado brasileiro apoia a chegada dos empreendimentos de energia, mas falha em não garantir leis que protejam os territórios costeiros e seus povos, “Nós precisamos ser respeitados como pessoas, esses empreendimentos são racistas”, afirmou o pescador  Tita, também de Tatajuba.    

Município de Acaraú 

A comunidade de Curral Velho, recebeu a comitiva no Centro Comunitário Encantes do Mangue, onde é possível ver torres eólicas. Antes das falas, um percurso ao redor da localidade para entender a dinâmica de empreendimentos eólicos muito próximos das casas. No território existe um processo de licenciamento junto a SEMACE para eólicas em terra, o megaempreendimento  “Ventos do Acaraú”, prevê 111 torres, distribuídas em 14 usinas, atingindo cerca de 10.200 pessoas, com: ruídos constantes, sombreamento das casas, remoção de pessoas, efeitos cumulativos sinérgicos e risco de acidentes. 

O território também sofre com a ameaça de torres no mar, já que, a praia de Arpoeira tem sido cobiçada, pois sendo o segundo mar seco do mundo, garante território plano e raso, lugar ideal para os megaempreendimentos economizarem nos custos de instalação e manutenção. A praia guarda em suas águas, um rico patrimônio histórico e cultural do estado, os Currais de Pesca, desde o período colonial essa técnica indigena de pesca tem legislações que a regulamenta como atividade econômica.        

“Se eles colocarem essas torres aí, vão impedir nosso ir e vir, assim nós vamos ficar encurralados, como já passaram essa cerca aí atrás da minha casa, não consigo chegar mais no meu roçado”, falou um dos moradores da região que sofrem com os impactos das futuras instalações do projeto “ Ventos do Acaraú”. Tome-se em conta, também, que este território já é profundamente impactado com as fazendas de criação de camarão, que prejudicam a produção agrícola e a saúde dos manguezais, importantes áreas de pesca das mulheres, além de ser o berçário de muitas espécies marinhas. 

O promotor de justiça de Acaraú, Denis Phillipe, ressaltou a importância de uma comunidade bem informada dos projetos locais.  Em despacho, após mesa de diálogos, o promotor solicitou a necessidade de realização de audiências públicas e estratégias comunicativas sobre o megaempreendimento “Ventos do Acaraú”.                        

Município de Amontada 

A comitiva saiu de Acaraú e seguiu para Amontada, última parada no litoral oeste cearense. No caminho para a escola do campo Maria Elisbania, no assentamento Sabiaguaba, a comissão pôde observar torres eólicas bem próximas de uma escola e das moradias, em algumas era possível ver uma distância de menos de 300 metros. O Brasil ainda não garante, em sua legislação, uma distância mínima entre megaempreendimentos e residências, o que acaba garantindo que empresas arrendem terras em propriedades privadas, com contratos sigilosos e abusivos.  

Já na escola os convidados foram recebidos com uma esquete do grupo de teatro estudantil,  onde  foi narrado os modos como empreendimentos chegam nas comunidades, com promessas de emprego e progresso, mas acabam gerando disputas e rachaduras internas. “O Ceará e o Brasil  são autossustentáveis em energia renovável, nós precisamos de uma transição energética, mas que seja justa e popular ” , disse  Valyres Sousa,  pescador artesanal e morador do assentamento. O justo é ter acesso a essa energia, a um mar livre para navegar e pescar, é sobre dunas protegidas, territórios e culturas preservadas . (…). “Esse debate remete sobre nossas vidas, nossas tradições”, enfatizou Valyres. 

No encontro, diversas pessoas da região demonstraram suas preocupações com a possível instalação de usinas eólicas no mar, e dos impactos que já sofrem com as eólicas em terra.         

Em Fortaleza 

A mesa de diálogo “ Energia Renovável: direitos e impactos”, teve seu último momento na Assembleia Legislativa do Ceará (21/03), a iniciativa dos encontros foi da Secretaria Geral do Governo Federal. Durante os debates Marcelo Fragoso, da Secretaria Nacional de Diálogos Sociais e Articulação de Políticas Públicas, que integra a Secretaria Geral, disse: “esse ministério  é voltado a promover a relação política do governo com a sociedade civil. Isso significa atender, dar tratamento à pauta, aos temas que a sociedade civil está trazendo ao governo”. E continua, “conseguir construir uma agenda que vai se desdobrar em pautas legislativas, em questões normativas, em uma série de iniciativas que vão precisar ser tomadas para que a gente alcance os nossos objetivos aqui de uma transição energética, mas com justiça social, com inclusão e com atendimento aos interesses e às necessidades do povo que vive nos territórios e quer continuar vivendo e quer viver com dignidade”.  Porém, essas intenções explicitadas, não tirou de cena o fato de que, em relação às eólicas o projeto do governo é fortalecer as implementações e a venda de energia, e considerando toda a realidade trazida, a dúvida é se o diálogo vai gerar alternativas positivas (será que é possível)  para os impactados.           

No caso do Ceará, por exemplo, a zona costeira cearense conta com 573 quilômetros de litoral,  e 324 comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas, segundo a Cartografia Social, solicitada pelas comunidades e organizações da sociedade civil e realizada pelo Laboratório de Geoprocessamento- UFC, para que o diagnóstico  integrasse a atualização do Zoneamento Econômico e Ecológico da Zona Costeira do Ceará, documento este que ainda não foi votado na Assembleia. Como estas comunidades serão consideradas e tratadas frente aos interesses do Estado e da iniciativa privada em acelerar a implementação de megaeólicas?

O quilombola, João do Cumbe, evidencia a  importância dos mapas sociais, já que as comunidades costeiras não são contempladas em mapas oficiais, ele diz:  “se não está nos mapas oficiais, dá o entendimento que é um território vazio. E, se é um território vazio, não tem gente, então, é fácil de seguir… o governo, na sua esfera municipal, estadual e federal, só se preocupa em garantir segurança jurídica para os investidores,  empreendimentos e não garante a segurança nos nossos territórios”. João, entregou uma carta de intenções ao Secretário e, também pediu uma atenção às questões fundiárias, a falta de consulta prévia, e da importância na conservação dos biomas terrestres e marinhos.          

É sabido que os verdadeiros protetores dos ecossistemas são as comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais, sendo também as que mais sofrem ameaças, com risco constante de ser “sacrificada” pelo bem maior do mundo. O racismo ambiental é herança do colonialismo, que mesmo em um país democrático de direito, se articula com os mesmos modos de exploração da terra e exclusão dos povos que lá estão. O Cacique Roberto Anacé, relatou as dificuldades que o povo Anacé vem sofrendo com grileiros em suas terras protegidas constitucionalmente, sendo  o Estado um dos maiores violadores  “ do nosso povo até o complexo industrial do Pecém, dá menos de 21 km e a  FUNAI sabe que não se pode construir sem consulta, livre, prévia e informada nesse raio … construção de eólica, usinas, vão tirar o povo indígena da terra ”, diz Cacique Roberto.  

Essa escuta itinerante é uma ferramenta do Governo Federal, no intuito de dar atenção a seus eleitores, mas será que garante a estes apoio e proteção institucional contra o Racismo Ambiental? Da invasão de seus territórios, dos impactos nos seus modos de vida e nos ecossistemas protegidos? Será que garante mudanças consistentes nos modos de licenciamento, instalação e fiscalização dos megaempreendimentos de energia? Vamos analisando e atuando para que os ares da política econômica não desmantelem os ventos, terras e águas que baseiam os modos de vida das mais diversas populações já afetadas por inúmeras desigualdades e ausências, em favorecimento do mercado de energia. 

Fotos: Carla Vieira

Matéria publicada originalmente no site do Instituto Terramar.


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