Breves considerações sobre o território
O bairro de Santa Cruz é um dos três maiores bairros da cidade do Rio de Janeiro (RJ), localizado ao extremo oeste, às margens da Baía de Sepetiba. Essa possui 447 km² de águas, com existência de mangues e estuários que ligam os rios ao oceano, atuando como berçário e abrigo para espécies nativas e ameaçadas de extinção. Na localidade, podem ser encontradas áreas de Mata Atlântica, com a maior concentração de fragmentos de vegetação nativa na cidade.
Tem uma população de 217.333 pessoas, sendo a maioria mulheres (52%). Em termos geracionais, uma forte presença de crianças e adolescentes (35%) e uma pequena população idosa (10%) Trata-se de um bairro de maioria negra (66%), com presença de povos com modos de vida tradicionais.
O bairro tem uma longa história, com crescentes conflitos relacionados à regularização fundiária. O processo de urbanização ocorreu sem planejamento infraestrutural adequado, junto com o processo de intensa industrialização, o que produziu uma área de grande vulnerabilidade socioambiental. De acordo com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, Santa Cruz tinha o quarto menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do município e o menor da Zona Oeste.
Apesar das zonas de conservação ambiental e cultural, agrícolas e residenciais (que ocupam 50% de todo o bairro), é a indústria que determina toda a forma de viver das demais áreas.
O histórico até o conflito atual
Originariamente, o bairro era ocupado por aldeias indígenas. Após a invasão portuguesa, o território foi usado como zona agrícola por um longo período e, no século XIX, políticas de incentivo ao uso do solo iniciaram um processo de urbanização desordenado e progressivo, agravado no início do século XX, quando a “renovação” de áreas centrais do Rio de Janeiro intensificou o crescimento dos subúrbios, sem planejamento e sem infraestrutura adequada. Santa Cruz é incorporado no processo de gentrificação da cidade, com todos os elementos de racismo ambiental imbricados à construção das grandes metrópoles.
Em 1960, a criação do Distrito Industrial de Santa Cruz induziu o deslocamento espacial das indústrias para a zona oeste da cidade, com drásticas transformações territoriais sem consulta ou participação da população.
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Na década de 1980, mais indústrias foram instaladas: o investimento em habitação e serviços públicos foi insuficiente diante do fluxo populacional; aumentando os loteamentos irregulares, as favelas, a pobreza e as baixas condições de vida da população em Santa Cruz.
Mesmo com vários esforços contrários, em 2005, a área foi transformada em Zona Estritamente Industrial, abrigando, assim, atividades com alto grau de poluição e impacto socioambiental, desconsiderando as grandes áreas residenciais da região.
Foi, nesse contexto, aliás, que a TKCSA se instalou no território em 2006, provocando o aumento dos conflitos em torno do uso do território. Embora o Plano Direto de 2011 tenha inserido a zona como Macrozona de Ocupação Assistida, onde o adensamento populacional e industrial deveria ser acompanhados por investimentos públicos em infraestrutura e medidas de proteção ao meio ambiente e à atividade agrícola, é evidente que não há uma assistência proporcional aos impactos negativos provocados pela industrialização.
O conflito
A ThyssenKrupp, grupo alemão que controlava a CSA junto com a Vale S. A, inaugurou a TKCSA, que se instalou no território em 2006 sob protesto de moradores e organizações sociais. A implantação da maior siderúrgica da América Latina recebeu aval do Estado Brasileiro, que forneceu o equivalente a 1,5 hectares de Mata Atlântica para construir o empreendimento, além de uma série de isenções fiscais do governo do estado. Embora a região já tenha sido impactada pelo processo de industrialização, a chegada da empresa exponenciou os problemas, como relataremos brevemente. Importante citar que essa empresa tentou se instalar em São Luís do Maranhão nos anos 2000, mas não conseguiu, devido à resistência da sociedade civil.
Houve etapas distintas do conflito: no primeiro momento, referente à pré-instalação, os pedidos de licença aconteceram de forma fragmentada, sem levar em conta todos os impactos relacionados entre si; além disso, o licenciamento foi concedido em apenas cinquenta dias.
Após isso, com as obras em curso, foram registradas fortes transformações no território, com impactos diretos e indiretos como a suspensão temporária da pesca, a realocação de famílias assentadas, desvios de canais, impactos na infraestrutura das casas, poluição sonora e do ar, impacto na vegetação do mangue e ocupação irregular do território.
O terceiro momento, de 2010 a 2016, foi a primeira fase operacional. Conflitos gerados nas fases anteriores permaneceram insolúveis e se acumulando, sendo que a autorização do licenciamento teve um caráter político, sem considerar as análises técnicas que previam desastroso impacto. Logo após o funcionamento do segundo alto-forno, começaram as “chuvas de prata” – grandes emissões de material no ar, criando uma espessa camada de material tóxico sobre as casas, plantações e rios.
Por último, o quarto momento, em setembro de 2016, quando foi concedida a Licença de Operação. Para obtenção da licença, a empresa deveria cumprir um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), assinado em 2012. Embora o acordo tenha sido declarado cumprido, há uma série evidente de irregularidades, além da gestão inadequada dos impactos. Importante dizer que houve ajuizamento de ações pelo Ministério Público que, em outubro de 2022, ainda não foram julgadas. Com a concessão da Licença de Operação, pelo INEA (Instituto Estadual do Ambiente), um ano depois, em 2017, a TKCSA foi vendida para o grupo ítalo-argentino Ternium, passando a se chamar Ternium Brasil.
O conflito tem um caráter estrutural, do modelo de desenvolvimento capitalista e outro conjuntural, em que sua implementação desemboca na transformação das condições socioambientais da região. Importante denunciar o entrelaçamento dessas questões com o Racismo Ambiental e o Patriarcado estruturantes, em que as pessoas mais afetadas pelos impactos negativos são as mulheres, sobretudo as negras.
Os impactos
A implantação da siderurgia trouxe diversos impactos negativos ao território. A poluição das águas e as restrições ao exercício da pesca impactaram as atividades econômicas tradicionais e a soberania alimentar de oito mil pescadores artesanais que lidam com os limites do território estabelecido pela empresa e com a perda na quantidade e qualidade do pescado.
A alteração da estrutura (desvio de canais, construção de uma barragem, implantação da estrada de ferro que passa perto das casas) para implantação da siderúrgica tem ocasionado constantemente enchentes no bairro, além de ter deixado danos na infraestrutura das casas. A remoção de 75 famílias de trabalhadores do Movimento dos Sem-Terra (MST), sem indenização compatível, e a poluição do ar e da água impactam diretamente na agricultura local. A queda da qualidade do ar, as “chuvas de prata” e o aumento dos ruídos têm gerado uma série de agravos à saúde física, com aumento de doenças respiratórias, dermatológicas, e mental. O crescimento desproporcional do bairro trouxe grandes conflitos fundiários com o aumento de favelas e ocupações irregulares, que reverberam nos índices de segurança, IDH e acesso a serviços, como saúde e educação, que não acompanharam o crescimento populacional e encontram-se defasados.
Pesquisas recentes mostram que a Ternium Brasil é responsável por cerca da metade das emissões de CO2 da cidade do Rio de Janeiro (11,63 Mt CO2, em 2017). E seu consumo de água chega a 570 bilhões de litros por ano, o equivalente ao consumo de uma cidade de 6,1 milhões de habitantes.
Mesmo assim, esses dados não são divulgados de forma transparente e acessível; as emissões da siderúrgica, por exemplo, foram apresentadas separadamente, dentro dos últimos inventários sobre as emissões gerais de gases de efeito estufa (GEE) municipais. Assim, além dos impactos locais, como a constante falta d’água para a população, a Ternium vem contribuindo, de forma significativa, para o aumento das emissões de GEE da cidade e, consequentemente, para a intensificação das mudanças climáticas.
Precisamos ainda ressaltar que esses impactos negativos prejudicam ainda mais as mulheres. Essas, precisam ser colocadas ao centro da atenção, cuidado e medidas compensatórias, já que pagam o preço mais alto: responsáveis socialmente pelos cuidados domésticos e dos doentes, e, em grande parcela, únicas responsáveis pelo cuidado com as crianças, essas são alvos de uma sobrecarga de trabalho com o adoecimento e a insuficiência de políticas de educação, assistência e saúde, além da sujeira provocada pela poeira perigosa que invade suas casas constantemente.
A alteração da dinâmica econômica, coloca-as em um lugar de extrema precarização no trabalho, e, sem seus modos tradicionais de obtenção de dinheiro e alimentos, ficam sem soberania alimentar para si e seus filhos, e também são diretamente atingidas quando o esgarçamento social e das políticas públicas fazem seus filhos vítimas fatais da política de segurança pública.
Estudo de Caso
Em 2022, foi realizado pelo projeto “De Mãos Dadas Criamos Correnteza” um estudo de caso dos impactos socioambientais associados à chegada da Thyssenkrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TCKSA), atual Ternium Brasil, no bairro de Santa Cruz, na cidade do Rio de Janeiro. A partir da caracterização do território e dos impactos promovidos pela siderúrgica, em suas diversas etapas, foi feito um levantamento dos conflitos e das violações infligidas às populações locais e ao meio ambiente, considerando a legislação vigente, os tratados internacionais e os diversos objetivos de desenvolvimento sustentável. Levou-se em conta a análise de gênero em meio aos levantamentos dos conflitos e violações, de modo a elucidar o adensamento do impacto para as mulheres e para os grupos socioalmente vulnerabilizados. Clique aqui para acessar!