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A deduzível (e polêmica) relação das enchentes no Rio Grande do Sul com as mudanças climáticas

Aumento da frequência de ocorrência de fenômenos extremos expõe consequências das mudanças climáticas. Apesar de cientificamente comprovável, essa admissão implicaria em gestores públicos e empresas admitirem necessidade de freio a projetos econômicos prejudiciais ao meio ambiente.

As enchentes e inundações que vêm ocorrendo no Rio Grande do Sul no último mês – com a tragédia de 163 pessoas mortas, centenas de animais mortos, 64 pessoas desaparecidas, 469 cidades afetadas e 581.643 pessoas desalojadas (1) – alertam para a urgente soma de forças para a aplicação de medidas emergenciais que atenuem esses impactos sobre as vidas e também para a investigação das causas.

Entender as causas é necessário para lançar luz sobre a possibilidade de que inundações podem se repetir em um futuro próximo e que medidas precisam ser tomadas para prevenção ou atenuação dos riscos implicados.

Fomos bombardeados nas últimas semanas com fake news e vários questionamentos sobre os possíveis “responsáveis”, seja por ação ou por omissão, do aumento dos níveis das águas na região sul. Algumas dessas notícias falam na relação das mudanças climáticas com o aumento das chuvas, outras são veementes em afirmar que o que ocorre é, apesar de trágico, um fenômeno natural, que possui antecedentes (como a enchente de 1941 em Porto Alegre), que é cíclico na natureza, descartando portanto a possível relação com o aquecimento global.

Antes de entrarmos nesse debate, é preciso destacar que, por mais incomum, e de difícil previsão, que seja tão alto índice de chuvas como o que está tomando conta do estado do RS, é inquestionável que alguns fatores que possibilitam o escoamento – ou drenagem – das águas para o solo vêm sendo sistematicamente ignorados na política pública da região em todas as suas esferas (nacional, estadual e municipal). Listando alguns deles:

  • Destruição da vegetação nativa dos biomas gaúchos Pampa e Mata Atlântica nos últimos 40 anos: estudos (2) do MapBiomas indicam a perda de 1,3 milhão de hectares (o que representa metade de todo território de Fortaleza), de vegetação nativa entre 1985 e 2022 para atividades agrícolas, mineração, plantações de eucalipto e urbanização;
  • Menor proteção de bioma (pampa) por Unidades de Conservação do Brasil, com 29 UC, o que equivale a apenas 4,66% de sua extensão territorial.
  • Menos da metade de quatro das nove bacias hidrográficas que integram a região do Guaíba é ocupada por vegetação nativa. A principal atividade responsável por essa supressão é o aumento do monocultivo de soja.
  • Em 2019, foram feitas modificações da legislação ambiental no estado em favor de grandes grupos econômicos, como bem trouxe o portal da Fundação Rosa Luxemburgo Brasil em uma publicação recente, que destacou duas delas: aplicação do autolicenciamento em alguns casos, que possibilita que as empresas assumam a responsabilidade pelo licenciamento de suas próprias atividades, dispensando a análise e aprovação (ou não) por parte dos órgãos ambientais, e a redução dos recursos públicos destinados à prevenção de desastres.

Além desses fatores, o que aconteceu no Rio Grande do Sul já vinha sendo alertado por cientistas na última década. O jornal Intercept Brasil fez um importante resgate em reportagem recente (06 de maio, acesso aqui) do projeto do governo Dilma (2014) “Brasil 2040: cenários e alternativas de adaptação à mudança do clima”, realizado por especialistas e composto por vários relatórios com conclusões e previsões relacionados às mudanças climáticas e seus impactos cumulativos e, portanto, potencialmente trágicos, tal como a previsão do aumento de chuvas no Sul do país.

O relatório fora arquivado pelo próprio governo do PT, que encomendou o estudo, e ao que se apurou, isso se deu pela contradição de os dados alarmarem para a redução do nível do rio Xingu, o responsável pela geração elétrica da usina de Belo Monte, o que reduziria, portanto, também a potência da geração de energia. Isso implicaria em mais um argumento em desfavor do megaprojeto. Defendido desde o governo Lula 2, o projeto de Belo Monte foi executado em 2016, durante a gestão de Dilma Roussef, à despeito dos comprovados impactos socioambientais, expulsão de comunidades tradicionais, perda de biodiversidade, mortandade de peixes, de abastecimento de água para os povos indígenas da região da Volta Grande do Xingu – Juruna e Arara – e dos gastos bilionários (estimados em 20 bilhões de reais) acompanhados de denúncias de corrupção. Sete anos depois, das 10.000 famílias que tiveram que deixar suas casas em função da construção da usina, 1.000 ainda aguardavam novas moradias em 2023. 

A compreensão de redução do nível do rio Xingu apontada no relatório do estudo Brasil 2040, ainda que publicado posteriormente na calada da noite após questionamentos de jornalistas, foi parte do cenário previsto pelos cientistas de que as mudanças climáticas configurariam ainda riscos de “Elevação do nível do mar, mortes por onda de calor, colapso de hidrelétricas, falta d’água no Sudeste, piora das secas no Nordeste e o aumento das chuvas no Sul.” segundo a reportagem, que se baseou no Relatório específico sobre recursos hídricos.

E afinal, essas inundações têm ou não a ver com as mudanças do clima?

Por mais que o aumento das chuvas faça parte da previsão de cenários das mudanças climáticas presentes em diversos estudos, tal qual o Brasil 2040 e outros estudos de atribuição rápida, sabemos que há também o argumento de este ser um fenômeno natural, e que o estado já enfrentou outras enchentes no passado. Mas o que nos ajuda a entender se este cenário é resultado do aumento da temperatura global é um fator sobre o qual precisamos falar mais e mais: a frequência desses eventos extremos.

O professor Alexandre Costa, da Universidade Estadual do Ceará, membro do quadro de sócios do Instituto Terramar, cita um cálculo do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) para uma reportagem da BBC Brasil sobre essa polêmica para elucidar esse fator: “As projeções apontam que, no momento em que o aquecimento global ultrapassou a barreira de 1ºC, os eventos extremos úmidos se tornaram 30% mais frequentes e 6% mais intensos”, informa ele.

Os estudos são fundamentais para embasar tecnicamente a compreensão das causas e dimensionar as consequências, mas o que o professor exemplifica com base no painel IPCC temos visto em nossos bairros, jornais e televisão nos últimos anos. Deslizamentos, temporais, inundações, desmoronamentos, chuvas e ventos fortes, secas severas têm levado vidas, habitações e prejuízos para a saúde e os ecossistemas com cada vez maior frequência.

O Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden) elencou recorde no ano de 2023 em desastres naturais desde a criação desse monitoramento federal, ano em que o Brasil teve recorde também de temperatura mais alta.

Por mais que as chuvas intensas no Sul tenham causa embasada na conjunção de frente fria, seca na Amazônia e consequente deslocamento dos “rios voadores” para o sul, junto com o fenômeno El Niño (destacados por meteorologistas para a citada reportagem do portal BBC Brasil), não se pode desvincular a frequência da conjunção dos fatores que vêm causado tragédias como a atual enfrentada pelo estado gaúcho. 

Se não formos capazes de social, política e coletivamente reconhecer essa relação, estaremos fechando os olhos para os próximos que, infelizmente, não tardarão a acontecer. A quem convém ignorar esses alertas e as necessárias políticas de adaptação e prevenção climática? E quem são (sempre) os mais impactados com as consequências dessa omissão?



(1)  Segundo Dados da Defesa Civil do RS de 23 de maio de 2024. Acesso em https://defesacivil.rs.gov.br/defesa-civil-atualiza-balanco-das-enchentes-no-rs-23-5-18h

(2) Sistematizados pelo jornal ((o))eco, disponível em https://oeco.org.br/reportagens/chuvas-no-rio-grande-do-sul-o-que-as-aguas-barrentas-que-tudo-arrastam-sinalizam/ Acesso em 20 de maio de 2024.

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O projeto De Mãos Dadas Criamos Correnteza é uma realização do Fórum Suape (PE), do Instituto PACS (RJ) e do Instituto Terramar (CE) e conta com o apoio da União Europeia, da Pão Para o Mundo, da Sociedade Sueca para Proteção da Natureza, da Misereor, do Fondo de Mujeres del Sur, da Both ENDS, do Fundo Casa Socioambiental, da Global Greengrants Fund e do Fundo Brasil de Direitos Humanos. O conteúdo desta publicação e do projeto é da exclusiva responsabilidade do Fórum Suape, do Instituto PACS e do Instituto Terramar e não reflete necessariamente a posição de seus apoiadores.

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